April 02, 2008

re-jei-ção: do latim 'rejectione', ato ou efeito de rejeitar; recusa, repulsa.
sempre que os devaneios vão de encontro a essa palavra, me vem à mente a primeira desconfortável lembrança de não-pertecer. era uma daquelas tardes chuvosas, em que o céu ficava com aquele tom triste e o pátio de cimento, tonalidade tão infeliz quanto a do tal céu, transformava-se numa pequena lagoa. eu ficava ali, sentada no canto, enquanto todas as outras crianças pareciam se deliciar com o infortúnio celestial. na terceira série eu já tinha percebido que nunca me encaixaria: pertencia aos pólos e aos pólos, não pertencia mais ninguém. de repente, não era mais a primeira da fila, não era mais a menorzinha que precisava pegar na mão da professora pra não perder o caminho. tinha crescido e agora era a última, a desproporcional, a assimétrica. tudo era pequeno e eu havia me tornado incapaz até de me perder. ao final da tortuosa marcha de volta para a sala, parecia ser a única que não havia sido tragada por uma onda de mar furioso. 'seca' era exatamente a palavra que poderia me definir em tal circunstância. seca por fora, por não ter tido nenhuma amiga que me puxasse pela mão pra correr por debaixo das bicas de improviso. seca por dentro, nem, ao menos, conseguia me mostrar triste por ser tão deslocada. 'professora, desliga o ventilador. tá TODO MUNDO molhado e tá fazendo um frio...' 'mas e eu, tia viviane? eu não me molhei! não me comportei como uma bárbara que não tem chuveiro em casa. estou seca, estou com calor, compreende?', quis dizer e nem disse. paciência! era sozinha demais, nem minoria eu conseguia formar. mesmo não tendo proferido uma palavra de revolta sequer, a professora pareceu ler as frases se formando na minha mente. me olhou, cúmplice, com aqueles olhos verdes, sardinhas salpicadas em volta, e disse: 'e lá fui eu que os molhei? vai ficar ligado, sim'. sorri pra ela, que pareceu ter entendido a minha gratidão. quanto alívio, não tive voz e fui ouvida! mas naquele mesmo dia em que me acudira da rejeição, me fez provar o amargo gosto da exclusão infantil. 'trabalho em grupo'. aquela junção de palaras me fazia estremecer por dentro. era sempre a mesma coisa: as melhores amigas se juntavam a um par de outras melhores amigas e um grupo se formava. e outro. e outro. e eu... sentada ali, naquele meio, rosto queimando do ridículo. queria gritar 'E EU?!', se já falasse palavrão ia querer gritar 'meeeerda, e eu, porra? com quem eu me junto nessa merda?', mas já sabia que a humilhação seria oito vezes pior, caso demostrasse me importar. não suportaria uma humilhação tão amplificada. então, melíflua, sorri 'posso fazer só? me arranjo bem com as minhas idéias'. e pude. fui ficando só, crescendo só, brincando só, correndo só, chorando só. me tornei uma solidão. acostumar com companhia foi difícil. meus amigos eram os livros, o piano, o dálmata, o diário, o computador, as palavras-cruzadas... éramos 7. 'professora, eu já tenho um grupo!'.

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