November 02, 2009


acordou. porque era o óbvio a fazer. duas e quinze da tarde... uma boa média para um feriado, mesmo considerando que não tivesse feito nada de muito interessante no dia anterior. é, acordou. e o de sempre: escovou os dentes, tomou café, banho, consciência de que tinha um trilhão de coisas pra fazer e, depois da consciência, vergonha na cara. debruçou-se na escrivaninha... contos, vários, precisava terminá-los, editá-los, enviá-los. ecrever era um prazer, mas, às vezes... demorou cerca de duas horas e quinze minutos pra perceber. aquele dia não era... bem, normal... era impressão, só podia ser impressão. mas aquela tarde... tão gélida. era primavera, não era? e estava fazendo sol, não estava? então, mas que friagem! e aquela música clássica tocando na sala, quem naquela família desajustada ia ouvir música clássica às quatro e meia de uma tarde de feriado? e aquele cheiro. era um cheiro tão familiar. era frio, o cheiro. e reconfortante. fechou as janelas. fim de tarde bonito lá fora. era uma sorte conseguir olhar uma brechinha do mar pelo buraco do ar-condicionado. não era como se morasse numa cobertura de vista pro atlântico, mas aquele buraquinho, por dias a fio, a fazia sorrir um sorriso cansado, quando lembrava da dádiva que era ver acordar e ver o mar. e pensava naqueles que moravam no gelo. mas também devia ser uma dádiva ver o gelo e o sol refletindo nele, pálido e frágil. aí pensava naqueles que moravam no sertão... mas sempre haveria uma dádiva, quem sabe, uma daquelas flores que dão bem em cima do cacto. bonitinhas, aquelas flores... pegou o telefone, ligou e o coração estava meio aos pulos, não tinha certeza do porquê. os olhinhos não tão oblíquos, mas bastante dissimulados - aliás, era um sinônimo perfeito pra dissimulação, aquele olharzinho - marejaram. lembrou de uma música triste. desligou o telefone. e continuou o que tinha que continuar. de repente, mais um arrepio frio. viu a faca, o cabo branco, pendendo da cabeceira. se perguntou o que ela estava fazendo ali. de repente, sem pensar muito, segurou delicadamente, levou ao pulso, o acariciou com a lâmina. de novo, o frio. era um frio mórbido. gostou da sensação. quando percebeu o que estava prestes a fazer, ficou horrorizada. largou a faca e tentou pensar em outra coisa. tinha que confessar, era meio impossível. voltou a escrever. é difícil escrever quando pensamentos de morte vêm à cabeça. pegou o telefone de novo, a cada sinal de linha, um nó ia apertando mais. e ouviu a voz. a voz suave, mas nem sempre delicada, que ouvira desde seu primeiro dia nesse mundo. limpou a garganta e falou, firmemente, mas no tom mais doce que teve forças de emitir 'tô com saudade. é só tô ligando pra dizer que eu queria lhe ver, passar aí antes de ir...'. a mãe não esperou a frase terminar, puro instinsto, quase gritando 'que história é essa, ir pra onde, menina?', 'calma, ir pra aula, de manhã. queria passar aí, pra lhe dar um beijo, faz tempo que eu não lhe dou um beijo, mãe. mas vou sair cedo demais, talvez na volta... na volta, lhe dou o beijo, bem, eu... tchau...'. e chorou, por uns minutos. não beijou ninguém antes de ir. nunca mais voltou.